sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Quando eu era vivo: suspense à brasileira

A estagnação do cinema brasileiro parece estar oficialmente acabada. Depois do Cinema Novo e do Cinema Marginal arrastando multidões para os cinemas para ver filmes experimentais na década de 1960, vieram as chanchadas e uma grande produção através da Embrafilmes até os anos 1980. Quando a empresa foi fechada em 1990, por Fernando Collor, um baque foi sentido no cinema brasileiro.

Em 1996, a indústria cinematográfica respirou com o que foi chamado de Cinema Retomada, mas só a partir de meados dos anos 2000 é que o cinema realmente voltou a ser uma prioridade, com a criação do Fundo Setorial do Audiovisual. Bem, deu certo. Ou melhor, está dando certo. Os últimos filmes brasileiros têm sido sucessos de crítica e bilheteria, e mais importante: ocupam as salas dos cinemas nacionais, onde, durante muito tempo, só se viam títulos estrangeiros -- em traduções mal trabalhadas, diga-se de passagem.

Os títulos são inúmeros (O Som ao Redor, A floresta de Jonas, Faroeste Cabloco, Xingu, Uma história de amor e Fúria, etc). Melhor ainda: a típica comédia está cada vez mais dando espaço a outros tipos de filme. Depois do lançamento do terror trash "Mar Negro", chega "Quando eu era vivo", uma mistura perfeita de ocultismo, cultura brasileira e classe média, dirigido por Marco Dutra.

O suspense -- que só não é terror por uma linha tênue, que parece ser definida pelo tanto que se mostra ou deixa de mostrar -- é protagonizado pelo desconhecido Marat Descartes, no papel de Júnior, um homem problemático que volta a morar com o pai viúvo depois de se separar da mulher. Descartes e Dutra, por sinal, já fizeram um outro filme juntos, o terror "Trabalhar Cansa", de 2009.

Até aí parece que um drama familiar vai se desenrolar, já que o pai, interpretado por Antônio Fagundes, tirou todas as coisas da mãe da casa, em busca de uma nova vida, e o filho quer as memórias reconfortantes da sua infância de volta. Fagundes, por sinal, nem parece estar interpretando. Simplesmente encarnou o senhor de classe média preocupado com a saúde, com a aparência, com a juventude, uma característica mais presente que nunca nos velhinhos dos últimos tempos. Apesar da barriga -- ou talvez por causa dela -- convence.

Mas aí, no meio desse pequeno drama classe média, surge o fantasma da mãe morta. Completamente identificável no nosso país, era aquela mulher que "tinha suas esquisitices", uma mistura de superstição com ocultismo. Até que a coisa vai longe demais e ela começa a se comunicar de formas estranhas com o filho, querendo que ele cumpra uma missão sombria.

O filme assusta. A música e a montagem, por sinal, são dois pontos fortes. O bom teria sido anotar o nome de todas as pessoas envolvidas com a produção e edição do som e da trilha sonora do filme, só para poder elogia-las nominalmente. No meio do filme, descobrimos uma música que seria um mantra para o demônio. Basta dizer que você sai do filme com ela retumbando na cabeça.

Todos os atores estão em ótima forma, com o perdão do trocadilho não muito verdadeiro para Fagundes, no quesito corpo. Mas as atuações surpreendem positivamente. Até mesmo Sandy Leah, no papel de Bruna, a estudante que aluga um quarto na casa de Sênior está okay. Ela ainda parece uma cantora fazendo uma ponta como atriz, mas okay. Mesmo beirando os 30 anos, ficou até parecida com uma estudante universitária, apesar do incômodo que tanta maquiagem cause.

A produção, no ápice do tipicamente brasileiro, traz uma manicure, que também é conselheira e rezadeira. Miranda, papel de outra desconhecida do público, Gilda Nomacce, é simplesmente fenomenal. Já na primeira cena ela chega naquele tremor, naquele medo precavido das pessoas que parecem ter algum tipo de sensibilidade extra.

É muito bom reconhecer, num filme de suspense, as características brasileiras. É bom poder sentir sem reticências aquele sentimento horrível que filmes de suspense trazem. De uma forma totalmente não maquinal, porque ali, na tela, você parece estar vendo sua família, seu vizinho. Nos filmes estrangeiros, especialmente os americanos, sempre sobra uma sensação de que "aqui não seria assim". Ou aquela coisa de não conseguir se conectar a pequenas coisas como a neve, o aquecedor, o triturador do ralo da pia. Coisas pequenas, mas que simplesmente não te deixam entrar completamente em cena. Em "Quando eu era vivo", só resta o "é assim mesmo que acontece", na nossa mente. Se não isso, pelo menos um "é assim que poderia acontecer".


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Post originalmente publicado no Opinião e Notícia

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Grand Central: quase um bom filme



“Grand Central” tem bons atores, bons planos e até uma boa temática, mas não se traduz em um bom filme. Conta a trajetória de Gary (Tahar Rahin), considerado um dos expoentes entre os novos atores franceses. Tahar cumpre bem seu papel na pele de um rapaz sem estudo, qualificação profissional ou perspectivas, que parece retratar parte da juventude europeia depois da recente crise.
Sem muitas opções, Gary vai parar em uma usina nuclear, num trabalho considerado perigoso e delicado. O objetivo da co-roteirista e diretora Rebecca Zlotowski parece ser retratar a classe operária do interior da França de uma forma verdadeira.  Chega a ser assustador. Ao comparar o filme com o Brasil, a classe operária brasileira e a juventude sem rumo que também está presente aqui, vemos a disparidade entre a Europa e o “terceiro mundo”, mesmo depois de uma crise. Mesmo na ficção.
A classe operária francesa, aqueles jovens com pouquíssimas oportunidades, ainda consegue um emprego digno numa empresa que se preocupa exaustivamente com a segurança dos funcionários. A educação, a ausência de violência, as cenas claras e limpas, os romances singelos, tudo parece contrariar o que seria típico em um filme brasileiro que tem como pano de fundo jovens em uma situação marginalizada.
Tirando essa discrepância, que pode fazer os brasileiros estranharem a combinação entre temática e estética, a única coisa que faz com que ele não seja uma comédia romântica muito clichê é justamente a usina nuclear, que ao mesmo tempo não parece ser real e, talvez por isso, o que acontece lá dentro não causa nenhum tipo de apreensão, mesmo quando a situação é de perigo.
A maioria das pessoas nunca viu uma usina nuclear por dentro, e isso pode instigar o interesse. Os procedimentos de segurança, o medo constante entre os trabalhadores da exposição à radiação excessiva, o acampamento que os torna quase uma família, o excesso de branco, de luvas, de máscaras. Tirando essas curiosidades, durante boa parte do filme a pergunta que fica é: o que Rebecca queria dizer com tudo isso?
Apesar de não convencer, o filme impressiona pela qualidade e a beleza dos atores, as locações e o figurino, e especialmente a antagonista feminina. Karole (Léa Seydoux) tem uma beleza singela, seu figurino se encaixa perfeitamente entre o rústico, o sensual e o delicado. Vale lembrar que Léa fez enorme sucesso em “Azul é a Cor mais Quente”, no papel da jovem de cabelos azuis que tem um relacionamento homossexual com a protagonista.
É com Léa que Tahar Rahin fica melhor em cena, na paisagem natural ao redor da vila onde os trabalhadores da usina moram. Entre a beira de um rio e um vasto campo é que o encontro entre eles acontece, já que Karole é casada com Toni, interpretado pelo simpático Denis Ménochet. No fim das contas, Léa simplesmente rouba toda a atenção e dá um pouquinho de graça à produção.



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Publicado originalmente no Opinião e Notícia

‘Feito Gente Grande’: para valer



‘Feito gente grande’ (Du Vent dans mes mollets) é realmente um feito. O filme francês têm como protagonistas duas crianças adoráveis. A tímida, com pais um tanto quanto excêntricos, Rachel (Juliette Gombert) e a pestinha Valérie (Anna Lemarchand), filha de pais divorciados, com a mãe bonita e solteira Catherine (Isabelle Carré). A trama retrata um universo infantil de forma nada débil, criando expectativas e tensões sobre temas complexos que nunca deixam de permear as crianças. Em especial, os dois mais significativos da vida adulta: sexo e morte.
Apesar de introduzir esses temas, especialmente da perspectiva da criança, o filme em nenhum momento é forte. Como uma comédia bem sucedida, a delicadeza e humor são trabalhadas o tempo todo.  A morte está presente desde o começo. A avó de Rachel (Judith Magre), sofreu um derrame, e depois de sair da casa de repouso onde morava, foi viver com a filha Colette (Agnès Jaoui), o pai Michel (Denis Podalydès) e a neta Rachel. Ela dorme no mesmo quarto da neta, que se assusta o tempo todo com a possibilidade da avó ter morrido no meio da noite, checando sempre se ela está respirando um um espelhinho em frente ao seu nariz e boca.
Rachel é filha única e um tanto quanto solitária. O pai as vezes fala sobre o campo de concentração Auschwitz, no qual seus irmãos morreram. “Ostivite”, como a menina chama, a faz pensar na morte, já que seu pai tinha muitos irmãos e deve ter sido melhor para ele ser filho único, sem ser importunado nem ter que dividir suas coisas. A idade do pai faz pensar que o filme se passa na década de 1990, apesar de isso não ser óbvio em nenhum momento, apesar das roupas engraçadas, que poderiam ser atribuídas a leveza do filme e a vontade de fazer algo divertido. A relação com a história do pai muda completamente, especialmente depois que ela conhece Valérie, na escola.
As duas, especialmente por incentivo de Valérie, arrumam algumas confusões, especialmente no que diz respeito a professora das duas, Danielle (Elsa Lepoivre). Danielle é casada com o diretor, se veste de forma sensual, sendo relapsa com a turma. Ela tem um caso com o professor de educação física e as meninas a flagram os dois no banheiro. Elas ficam com a cena na cabeça e uma grande sacada do roteirista foi transformar todas as dúvidas em cenas palpáveis e do ponto de vista de uma criança.
Para lidar com o sexo, as duas meninas imitam os professores com uma Barbie e um Ken. Os risos, as correrias, a paixão inocente de Rachel pelo irmão mais velho de Valérie, os gritinhos típicos de duas meninas de nove anos, tudo é muito verídico. As cenas com as duas meninas são as mais interessantes do longa, pelo desempenho artístico, mérito delas, e pela direção eficaz e libertadora de Carine Tardieu, que também contribuiu para o roteiro. A interação entre as duas é fantástica e é como se elas duas fossem realmente duas amiguinhas descobrindo o sentindo das coisas importantes.
Rachel, faz as mesmas perguntas que os adultos. Ela quer entender a morte, a tristeza, o amor. Apesar de às vezes esquecermos, é assim com toda criança dessa idade, e Tardieu demonstrou isso de forma bonita e singela, como costumam ser os filmes franceses, em suas cores pasteis. Um filme considerado de adulto, que não surpreenderia de nada ao ser completamente compreendido por uma criança como Rachel.


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Post originalmente publicado no Opinião e Notícia